João Gonçalves, 44 anos, investigador do Instituto de Medicina Molecular (IMM) da Universidade de Lisboa, não escondia o seu entusiasmo quando, esta manhã, falou ao telefone com o PÚBLICO. Sabia que, ao fim da tarde, no âmbito dos seus Grand Challenges Explorations, a Fundação Bill e Melinda Gates anunciaria oficialmente que o seu projecto tinha sido um dos 88 escolhidos entre 2500 vindos do mundo inteiro para receber financiamento.
O projecto insere-se na categoria de concepção de “novas abordagens para curar a infecção pelo HIV”, uma das seis definidas por aquela prestigiada entidade norte-americana para esta ronda de bolsas (a sexta desde que a Fundação lançou a iniciativa).
Pode parecer muito arrojado falar em “cura” quando se fala de sida, mas é exactamente essa a meta da equipa de João Gonçalves: “encontrar as células infectadas pelo HIV, mesmo que ele esteja completamente adormecido, e matar essas células”.
O HIV infecta os seres humanos inserindo-se no ADN das suas células imunitárias e utilizando a maquinaria celular para se replicar e partir ao ataque de outras células. Actualmente, os mais potentes “cocktails” de medicamentos contra o HIV apenas permitem reduzir a sua taxa de replicação, fazendo com que a carga viral no sangue da pessoa infectada desça para níveis praticamente indetectáveis durante longos períodos. Mas isso não acaba com a doença. As células infectadas pelo HIV continuam vivas e, no seu interior, o vírus continua quer a replicar-se lentamente, quer inactivo – em autênticos “santuários” no organismo humano de onde é quase impossível extirpá-lo. Esse é, aliás, um dos grandes problemas com que se defrontam hoje os especialistas.
O derradeiro objectivo dos cientistas portugueses é precisamente acabar com todas as células infectadas, incluindo as dos “santuários” (que, apesar de representarem um por cento das células infectadas, são as que fazem com que o HIV possa regressar em força). E tudo isto sem matar as células imunitárias que não estão infectadas pelo HIV.
A estratégia que querem desenvolver é diferente e “totalmente inovadora” em relação ao que tem sido feito até agora, explica-nos João Gonçalves. Vai ter duas fases, uma destinada a matar as células imunitárias onde o vírus da sida está activo e a outra a eliminar os derradeiros redutos de células onde o vírus se encontra “adormecido”.
O processo envolve o fabrico de nanopartículas, de anticorpos e de proteínas muito especiais. Basicamente, os cientistas vão construir pequenos anéis de ADN que irão a seguir “embrulhar” dentro de minúsculas esferas artificiais. Essas “nanopartículas” serão tornadas capazes de detectar as principais células-alvo do HIV – os chamados linfócitos T CD4 – graças a anticorpos espetados à sua superfície e especificamente desenhados para se ligar aos receptores CD4 dos linfócitos T. Deste modo conseguem inserir o seu pequeno anel de ADN dentro delas. “Há quase 10 anos que fazemos engenharia de anticorpos”, explica João Gonçalves. “Temos o know-how”.
Na primeira fase do projecto, o anel de ADN será composto por um gene que fabrica a proteína viral de activação do HIV (chamada Tat) acoplado ao gene de uma toxina. “A Tat vai actuar sobre o vírus, o vírus vai reactivar-se – e ao reactivar-se, vai activar a toxina, que vai matar a célula”, explica João Gonçalves. A reactivação do vírus pela sua própria proteína permite atingir um nível de actividade viral suficiente para garantir que a toxina seja activada. “Vamos utilizar os mecanismos do próprio vírus para provocar o suicídio celular”.
Na segunda fase, o anel de ADN será diferente: transportará para o interior dos linfócitos o gene de uma proteína dita “dedos de zinco”, também fabricada pelos cientistas, que tem a particularidade de conseguir detectar sequências genéticas específicas do HIV mesmo quando o vírus está totalmente inactivo dentro do ADN da célula humana. “Já trabalhamos na construção de proteínas dedos de zinco há vários anos, e já testámos este tipo de proteína contra o HIV”, diz-nos o cientista. O gene desta proteína será acoplado ao de uma enzima chamada timidina cinase, destinada a activar um medicamento antiviral, o ganciclovir, que deverá ser administrado ao mesmo tempo. “Quando a proteína dedos de zinco reconhece o ADN do vírus, activa a enzima, que por sua vez activa o ganciclovir, que mata a célula”, salienta João Gonçalves.
Se os resultados forem positivos, as duas abordagens – que segundo João Gonçalves são complementares – deverão ser testadas em paralelo, primeiro em macacos e depois em ensaios clínicos de segurança e eficácia, o que poderá demorar mais dois anos.
E se não funcionar? “Temos outras coisas na manga”, responde-nos. “Temos um plano B”. Mas o investigador está confiante: “temos 80 por cento de certeza que a primeira fase vai funcionar e 50 por cento que a segunda vai funcionar”. E de facto, se funcionar, as proteínas dedos de zinco têm um potencial de aplicações que vai muito para além da sida: “É uma tecnologia que pode ser aplicada a outros vírus e mesmo a cancros”, diz o cientista.