Lisboa, 23 abr (Lusa) – A 25 de Abril de 1974, numa época em que os diretos televisivos eram ainda uma miragem, foi o cinema que saiu à rua. Mas, hoje, os filmes que registaram as primeiras imagens em movimento da Revolução são raramente vistos.
Os jornalistas foram ao encontro dos acontecimentos, armados de blocos, microfones e máquinas fotográficas. Mas é aos cineastas que se deve agradecer as imagens simbólicas que passam e repassam a cada ano que faz mais um ano a democracia.
Fernando Matos Silva é um deles. Um dos realizadores do coletivo Cinequipa, que fez “As Armas e o Povo” (1975), entre outros, contou à agência Lusa, recentemente, como foi dos “primeiros a ir para a rua filmar”, com o irmão, uma Paillard Bolex e bobines de 30 metros.
“Todas as filmagens até ao meio dia do 25 de Abril só existem porque arriscámos filmar e foram filmadas com muito prazer, muito amor, muita força e muita ideologia”, lembrou, acrescentando que, na altura, os filmes foram mostrados porque os próprios realizadores foram “projectá-los pelo país fora com máquinas de 6 mm”.
Como “era tudo assinado coletivamente”, muitas das imagens destes filmes “passam todos os anos [na televisão] completamente desgarradas e deixaram de ter autoria”, criticou, durante a última edição da Panorama – Mostra do Documentário Português.
Hoje, é difícil apanhar estes filmes em salas de cinema, quanto mais na televisão. E o resultado é que acabam por se ver sempre os mesmos planos da chegada da liberdade.
“É uma pena que esses filmes não passem. Devíamos trabalhar muito mais as memórias que estão guardadas na Cinemateca e mesmo na televisão”, defende a jornalista e documentarista Diana Andringa.
Mas, sublinha, “não há interesse em que se cultive esta memória”, diz-se que é melhor “esquecer esses anos esquisitos, em que as pessoas gritavam muito e se insultavam e faziam manifestações”.
“Querem-nos infantilizar a todos muito, desmemoriando-nos”, critica. Em Portugal, diz, “há uma amnésia” – “imposta” e “fomentada”. À qual o cinema, como garante da memória coletiva, não escapa.
“Querem-nos impor uma forma de olhar para as coisas. Estamos muito dominados, tantos anos passados sobre o 25 de Abril, por uma mentalidade salazarista. Criou-se a ideia de que temos de viver em consenso, quando o consenso não existe”, compara.
Ora, acredita, “não se cresce sem olhar o passado” e é para isso que servem os documentaristas, “para lembrar que as coisas aconteceram”.
Rui Simões, realizador de “Deus, Pátria, Autoridade” (1975) e “Bom Povo Português” (1980), reconhece que em 1974 havia “outra militância”, no país e no cinema.
“Não sei se o cinema tem estado à altura do país ou se o país tem estado à altura do cinema. Acho que o cinema é maltratado (…). O poder não gosta do cinema, a cultura não gosta do cinema, os portugueses não gostam do cinema. O que era interessante era passarmos todos a gostar do cinema, sobretudo do feito por portugueses”, reclama.
A realizadora Susana de Sousa Dias, que tem feito nascer filmes do arquivo da PIDE (“48”, por exemplo), reconhece que se estava a viver “um acontecimento excecional”, mas lamenta que se tenha perdido o “carácter interventivo” e que se faça pouco documentário “sobre os assuntos que estão a acontecer”.
Em todos os filmes do pós-Abril, há um jornalista incontornável: Adelino Gomes. “Toda a gente estava a descobrir a liberdade” e era tudo vivido com “intensidade de cem por cento”, afirma, acrescentando: era “um momento de aprendizagem, de euforia”, que, por isso, “não era possível aguentar por muito tempo”.
Os jornalistas, de um dia para o outro, passaram de uma "jornada de trabalho sob a censura" para a liberdade. “Eu compreendo que hoje não se viva em PREC [Período Revolucionário Em Curso]. Nalguns aspetos, até acho que é bom que não se viva em PREC. Agora, hoje, sobretudo nos últimos tempos, vivemos quase no anti-PREC. Só notícias más, de recuos”, confronta.
“O engajamento passou um bocadinho de moda”, diz Diana Andringa, que assume ter “um ponto de vista” quando faz um filme sobre a Guerra Colonial, por exemplo. “Vivemos nesta coisa mansa em que parece mal discutir-se ideologias. Parece que quem discute ideologias é assim um bocado atrasado, a ‘soixante-huitard’ retardado, como por vezes me chamam”, ironiza.