25 de novembro de 2010

Lido no Público : C"est l"humour luso-francês, pá!


António é emigrante em França. Tem bigode, sobrancelhas espessas, mastiga um palito, coça o peito peludo, diz asneiras. António é a personagem criada por Rodolfo Ferreira Ribeiro - um luso-descendente nascido em Paris cujos pais emigraram para França na década de 1970 - e faz humor com os estereótipos da emigração lusa. Mas não está sozinho. Há mais como ele.

Quem fizer uma pesquisa no YouTube por Ro et Cut dá de caras com esta dupla - composta por Rodolfo e Mohamed Ould Bouzid - que mais parece saída de um filme neo-realista que deu para o torto. Está tudo lá, a atingir-nos em cheio como um garrafão de cinco litros. As barrigas salientes, o futebol como fé, a religião como desporto, o machismo, o "deixa-andar-que depois-logo-se-vê", a boa pinga, os almoços de rebentar pelas costuras, a pronúncia macarrónica, as mulheres de buços fartos e, sim, uma e outra vez, os palavrões.

Este tipo de humor-implosão - o humor feito a partir de dentro de uma comunidade - faz furor. Sobretudo na Internet. A dupla Ro et Cut transformou-se num fenómeno sério de popularidade online. Os emigrantes portugueses em França - mais de meio milhão de pessoas - riem-se com os estereótipos dos emigrantes de primeira geração. Daqueles que chegaram com uma mala de cartão, assentaram arraias na periferia e deitaram mãos à obra.

O humor feito pela segunda geração de uma comunidade de emigrantes não é novidade. Fenómeno semelhante aconteceu no Reino Unido com os filhos de indianos que rumaram ao país em busca de uma vida melhor. Séries como Goodness Gracious Me e The Kumars at No. 42 (ambas da BBC) tratavam desse desajustamento entre gerações. A guerra entre o inglês e o hindi, entre os jeans e os saris, entre o fish&chips e as chamuças. Estar no cruzamento de duas culturas é estar no epicentro dos choques, da estranheza e de todo o humor que isso gera.

Rodolfo Ferreira Ribeiro, 26 anos, diz ao P2 que a sua inspiração está nas pessoas e situações que o rodeiam. "Gosto do humor que trata do quotidiano. A vida das pessoas é apaixonante e, para os humoristas, é uma fonte de inspiração inesgotável."

Rodolfo voltou-se para o que rodeava, para a sua própria família, e transformou as suas características em material humorístico. "As minhas paródias resumem uma parte da minha vida que eu transformo em sketches, como por exemplo o regresso a Portugal nas férias do Verão. A personagem do António é familiar a todos. Toda a gente conhece um António à sua volta."

Rodolfo insiste, porém, que está empenhado em inovar estas caricaturas e "trazer novas ideias para o circuito do humor".

Lionel [assim mesmo, com um i] Cecílio, também ele luso-descendente, actor e que teve em cena o espectáculo Suite Royale 2026, no qual parodiava as suas raízes portuguesas, confirma que também se inspirou em quem o rodeia: "Comecei a imitar as pessoas que estavam à minha volta - as tias, os avós... - e a transformar em gozo as situações e as pessoas que tinham valor para mim. Se eu gozasse com pessoas de quem não gosto, isso seria apenas maldade. Não teria piada."

O seu humor é, por isso, uma homenagem às pessoas de quem gosta. E mais: gozar com os portugueses é, no fundo, gozar consigo próprio. "A autocrítica é a base indispensável de um humor saudável", diz.

E afinal quais são as características com que gozam os filhos dos emigrantes? Carlos Pereira, director do Luso-Jornal e espectador atento destas novas formas de humor em que a comunidade portuguesa se vê retratada, explica ao P2 que há sempre características constantes nestes exercícios de autocrítica. "O machismo, as asneiradas, o facto de os portugueses serem barulhentos, a religiosidade, as mulheres peludas..."

A mistura do francês e do português - unanimemente considerado pelos humoristas como uma terceira língua, o frantuguês - é outro ingrediente sempre presente. "Todos já ouviram frases do género: "Vou meter ça na poubelle do lixo e après já volto tout de suite"...", ilustra Lionel.

Ana Sofia Veloso é actualmente assessora de imprensa da Universidade de Coimbra, mas nasceu em França, filha de emigrantes portugueses, e mantém o contacto com este tipo de humor que se vai fazendo em França, especialmente através na Internet. Ao P2 explicou que há sempre uma série de hábitos realistas que vão sendo colocados ao longo dos sketches: "A garrafa de vinho do Porto, a imagem de Nossa Senhora de Fátima, o terço pendurado no carro, a cerveja, o vinho tinto, o vinho verde, a importância do futebol, a sueca, a música popular portuguesa ou ainda os carros a abarrotarem nas viagens para Portugal..."Entremeado com todo este universo kitsch, Ana Sofia salienta que há igualmente aspectos bem retratados, por exemplo, "a importância da família na comunidade portuguesa e o amor pela pátria que se deixou para trás".

Todos os humoristas dizem que o público, seja português seja francês, reage muito bem ao tipo de humor que praticam.

José Cruz, que tem em cena, em Paris, a comédia Olá - assim mesmo, à portuguesa, embora o espectáculo seja integralmente em francês - é outro humorista de raízes lusas. Cruz sublinha que "os portugueses têm muito orgulho dos artistas que os representam, quando estes vão mais além dos clichés", disse o jovem humorista ao P2.

Na opinião do director do Luso-Jornal, as pessoas reagem melhor a este humor-sapatada quando ele vem da própria comunidade. "É mais normal que as piadas sejam aceites, se forem feitas por um português ou luso-descendente. Se as piadas tiverem origem numa pessoa fora do "círculo", é natural que os sorrisos saiam amarelos. As pessoas mais velhas, que foram para França e passaram muitas provações, ainda têm alguma dificuldade em se rirem do imaginário dessa altura, dos bairros de lata. Há pessoas que ficaram mais complexadas do que outras. Mas para a segunda geração isto é tudo natural."

Mas as mentalidades estão a mudar, avalia Carlos Pereira: "Durante muito tempo não se abordou esta questão. Não se queria olhar para trás. E aqui há finalmente um olhar para trás, mas um olhar do caricato. No fundo, trata-se de ir buscar aquilo que os franceses acham de nós e brincar com isso (...). Já houve distanciamento suficiente para as pessoas se rirem disso", diz o director do Luso-Jornal. Até porque, sublinha, o "português da caricatura humorística já não corresponde de maneira nenhuma ao português que emigra hoje para França".

Ana Veloso comenta, por seu lado, outro aspecto deste fenómeno de reacção dos portugueses à autocrítica: "Confesso que até fiquei surpreendida com o entusiasmo da segunda geração em relação a este tipo de escárnio, porque alguns desses jovens foram vítimas dos estereótipos ligados à comunidade portuguesa. Muitos foram gozados por alguns hábitos que os pais trouxeram de Portugal (folclore, música popular, religião...). Ou mesmo pelas condições sociais dos pais. Por exemplo, o tipo de trabalho que se associa logo a portugueses: homens a trabalhar na construção civil e mulheres a trabalhar nas limpezas.""Ora" - continua Ana Sofia Veloso, já há onze anos a viver em Portugal -, "estes sketches até tiveram o efeito contrário. São uma espécie de catarse: partiram dos estereótipos veiculados na sociedade francesa sobre os portugueses e reuniram-nos todos e levaram-nos ainda mais longe, até ao limite, sem complexos, o que acabou por surtir um efeito libertador e realmente cómico."

A dupla Ro et Cut começou a ganhar visibilidade quando fez uma paródia ao omnipresente anúncio à marca de reparação de pára-brisas Carglass, que na versão macarrónica e original de António se transforma em Carglouch. Rodolfo estava longe de imaginar que este vídeo se transformaria num fenómeno viral, visto milhões de vezes desde que foi colocado no YouTube.

De lá para cá, a personagem António não morreu. Antes evoluiu. Muitos dos sketches estão disponíveis na Internet (e agora até em DVD), que serve igualmente para que estes humoristas baseados em Paris possam ver o que se faz em Portugal em termos de humor.Por contraditório que possa soar, Rodolfo cita os seus favoritos: Gato Fedorento e Fernando Rocha. Lionel Cecílio também gosta do quarteto que pôs Portugal a dizer "falam, falam, falam" e José Cruz nomeia, por seu lado, a série Os Contemporâneos. "Desde que os descobri, não páro de ver os vídeos na Internet. E, ao descobri-los, descobri também o Bruno Nogueira e os números de stand-up, que eu adoro. Também me falaram muito de Pedro Tochas. Gostaria de o ver ao vivo."

José Cruz acrescenta ainda: "Hoje, com as novas tecnologias - televisão por satélite e Internet - podemos descobrir o trabalho uns dos outros e influenciarmo-nos mutuamente."

Comum a todos é igualmente a devoção por Portugal. Rodolfo diz que tem por hábito vir pelo menos duas vezes por ano ao nosso país, uma no Verão e outra no Inverno. "É importante para mim regressar a Portugal e visitar a minha família. Sou muito apegado às minhas raízes."

Rodolfo até já conseguiu fazer duas representações em Portugal, uma em Fafe e outra em Pombal, e diz que o público reagiu muito bem.
 
José Cruz admite, por seu lado, que a sua segunda cidade preferida é Lisboa, depois de Paris. "Gostaria de ter um pequeno apartamento em Lisboa e poder assim partilhar a vida entre os meus dois países." Enquanto esse desejo não se concretiza, sonha apenas com a possibilidade de um dia poder actuar em Portugal.