11 de outubro de 2011

Abertura da semana de cinema em Nantes

A 14a. semana do cinema de língua portuguesa de Nantes estreou hoje de bela maneira com a apresentação do filme "Journal, Lettres et Révolutions" de Flavia Castro. Um debate animado pelo professor Guilherme Cavalheiro permitiu conhecer melhor o contexto histórico do filme.

Transcrevo a seguir uma entrevista da realizadora :

Você é uma filha do exílio, uma brasileira que nasceu de pais exilados e cresceu fora do Brasil. O título do filme, e o fato de você ter visitado os países onde morou durante os anos de exílio, deixa uma pulga atrás da orelha: por que não buscar o Brasil que você nunca conheceu.

Isso é complicado. O filme começa com a morte do meu pai. A morte dele é o que me deu vontade de fazer o filme e a busca é relacionada a isso, é uma tentativa de descobrir o que aconteceu, como ele morreu. Mas ao longo do filme isso se torna a busca da vida também. Acho que o filme junta essas duas coisas. A morte aconteceu depois do exílio em 1984. A busca é realmente sobre como meu pai morreu e é quase uma história policial que atravessa o filme todo. As viagens que eu faço ao longo do filme são para contar da minha vida, do ponto de vista meu, de criança, e com as cartas do meu pai, da época também, que são a visão dele.

E como essas duas partes se equilibram no filme ?

Eu escrevi um roteiro estruturado como se fosse uma ficção e com duas partes muito definidas e que iam se alternando ao longo do filme, de um lado, a vida, do outro, a morte. A vida do meu pai, com a volta aos países do exílio, países onde meu irmão Joca e eu passamos a infância. Eu queria transmitir o cotidiano da vivência do exílio, feita de pequenas coisas e não de grandes atos. Sensações e impressões, mais do que pensamentos. E com duas narrativas, duas vivências de uma mesma época se cruzando - a da minha infância, com textos meus e a do meu pai, através das cartas que ele escreveu ao longo da vida. A outra parte, é a do "presente" em que eu tento saber mais sobre as circunstancias em que meu pai morreu em 1984. Converso com policiais, médicos legistas, etc. Era a parte aberta do filme, pois eu não sabia o que iriam dizer, nem como acabaria.

Essa parte do roteiro mais aberto, por envolver terceiros que você não controla...

O meu pai morreu em Porto Alegre, em 1984, na casa de um alemão, ex cônsul do Paraguai no Brasil, uma história estranha, da qual se sabe pouco. E para tentar entender como meu pai morreu, eu fui conversar com jornalistas que cobriram o caso na época, com policiais e médicos legistas.. Essa parte do filme realmente era totalmente aberta, eu não tinha a menor idéia de como o filme ia acabar, se eu ia ter uma resposta pras minhas dúvidas.

E a parte que o roteiro era mais estruturado, mais escrito, era a parte da vida, onde desde o início eu sabia que eu queria ter essa visão da infância no exílio e a do meu pai, pelas cartas. O mais difícil foi integrar a investigação depois de filmada, porque era muita informação, eu não sabia como dosar isso.

Mas você acha que o filme foi tomando uma forma que já não acomodava tão bem essa parte da investigação ?

Apesar do mistério sobre a sua morte, a investigação não me interessava tanto quanto a vida, a trajetória. Mas as duas parte são indissociáveis, pois foi essa vida que levou a essa morte particular, e não à uma outra.

Esse não é seu primeiro trabalho com documentário, correto ?

Trabalho com cinema desde os 18 anos em cinema. Já fiz um pouco de tudo, mas sou basicamente roteirista. Minha trajetória profissional se divide entre a França e o Brasil. Na França, escrevia roteiros para series de TV. Mas foi como assistente de direção dos diretores Richard Dindo, em "Diário do Ché na Bolivia", e depois com Philippe Grandrieux, que me apaixonei pelo documentário. Atualmente acho que as fronteiras entre fição e documentário estão cada vez mais incertas e isso é muito bom.

Eu comecei a trabalhar em documentário com o Richard Dindo, documentarista suiço alemão. Fui assistente dele no filme "Diário do Ché na Bolivia". Foi uma experiência importantíssima para mim. Ele tinha um roteiro muito preciso, em que nada era improvisado. Logo depois, trabalhei com o diretor francês Philippe Grandrieux (diretor do filme Sombre) Ele mesmo filmava e tinha uma atitude que era exatamente inversa à do Dindo. Grandrieux chegava muito perto das pessoas com sua câmera, não cortava nunca, não pedia nada e ia integrando tudo que acontecia ao filme. O filme surgia desse fluxo entre ele e o "outro".

Esses dois métodos de trabalho que acompanhei de perto, me mostraram na prática, o quanto o documentário contemporâneo pode ser rico e diverso. Na França, aprendi também uma forma de trabalhar em produção muito mais econômica, em que as equipes são mínimas e os papéis menos rigidamente definidos do que aqui. Isso foi muito útil para fazer meu filme.

Bom, você fala de duas formas de se fazer documentário, um deles com roteiro totalmente estruturado, outro mais interessado em captar toda aquela realidade que cerca a realização de um filme. Fazer um documentário com roteiro fechado significa fazer dos personagens marionetes ou você pode dar espaço para as pessoas ?

O roteiro mais “fechado” no meu caso não era com relação às pessoas, mas com minha própria memória e forma de articular os elementos fílmicos. Eu fiz algumas entrevistas com a minha mãe nas quais ela fala coisas surpreendentes, que obviamente não estavam no roteiro mas entraram no filme. Mas quando eu digo fechado, é que eu sabia o que eu queria dizer, eu tinha os textos dos meus offs. Estruturado nesse sentido, pois eu sabia que o filme ia começar no Brasil antes do golpe, eu sabia como e o que eu queria contar com essa história. Mas não é um filme de depoimentos, é um filme que tem outras formas de contato, que tem uma narrativa particular nesse sentido porque há as cartas do meu pai, o ponto de vista dele próprio, do que ele vivia naquela época.

Mas o fato é que quando você vai entrevistar um médico legista, quando isso entra no seu roteiro, você imagina o que vem daquilo.

É complicado porque eu fui conversar com essas pessoas justamente para saber o que tinha acontecido. Então eu não tinha a menor idéia do que eu ia ter. Mas foi muito difícil montar depois, porque eu tinha muitas informações . Os militantes, por exemplo, os amigos, eu tive entrevistas de 3 ou 4 horas, teve alguns que entraram 5, 3 minutos no filme, outros nem entraram. Foi muito difícil, havia coisas muito lindas, era muito emocionante. Mas eu não queria que o filme avançasse só, pelos depoimentos, ele tem alguma coisa bastante ficcional na estrutura dramática dele.

Qual a responsabilidade de um diretor em um filme como esse ?

As mesmas que em qualquer outro documentário: descobrir o ponto de equilíbrio, o quanto é possível aceitar a exposição do outro, do "personagem" retratado. As vezes, até indo contra o desejo da pessoa.

Mas quando o "personagem" é o nosso próprio pai, - alguém muito próximo - e que além disso não está mais aqui para dizer o que pensa - , essa responsabilidade tem um lado absolutamente subjetivo. E justamente por isso, é bem mais difícil, eu acho.

A trajetória do meu pai se confunde com a história de toda uma geração de militantes que lutaram contra a ditadura no Brasil, que foram presos e depois exilados… É uma geração que sofreu o impacto de sucessivas derrotas, com as ditaduras se implantando pela America Latina afora e o projeto revolucionário sendo aniquilado. Acho que o filme revela um pouco do cotidiano dessa vivência, o lado íntimo. E isso inclui a família e o que eu chamo de “minha infância militante”, a vida das crianças no exílio. Havia muitas…

E sua carreira no Brasil? Você já tinha escrito e dirigido um curta de ficção no Brasil (“Cada um com seu cada qual”). Você está trabalhando num outro projeto atualmente?

Eu trabalho muito como roteirista, e agora eu escrevi esse primeiro longa, que se chama “A memória é um músculo da imaginação”, no qual eu estou trabalhando. Tenho também outros projetos de documentário. E quero muito fazer um filme com o material que sobrou do “Diário...”, com as entrevistas com os militantes.